[RECEITAS VEGANAS][bleft]

A Cantada e a Burka Invisível

Por: Camila Arvoredo

Há uma burka invisível indicando a mulher que deve ser respeitada e a que
não deve. Fica a critério dos homens vestir ou não vestir a burka na mulher.
Na foto: ator egípcio se veste de mulher para documentar a violência
verbal contra as mulheres em reportagem. Fonte: HuffingtonPost
Eram quase dez horas da noite e o ônibus estava extremamente vazio. Uma senhora, um senhor no fundo e eu perto do cobrador. Desde cedo eu aprendi que o melhor - em situações de ônibus vazio tarde da noite -  é sentar sempre do lado do cobrador, pois sempre ouvia histórias de garotas estupradas dentro do ônibus nos bancos do fundo. Lá estava eu, voltando de uma confraternização para pegar o carro no estacionamento da universidade, quando adentramos na Avenida Afrânio Peixoto em São Paulo, muito conhecida pelas prostitutas. De repente, o motorista pára fora do ponto e estaciona a porta em frente de uma moça prostituta. Ele começa a dizer obscenidades e o cobrador começa a rir, como se fosse total direito dos dois xingar e incomodar a moça, somente porque ela estava pronta para vender seu sexo.

Algumas mulheres não merecem respeito, segundo a
sociedade, e isso diz respeito a roupa que usa e a seu
comportamento sexual. Fonte: Escritos Feministas.
Ela ficou quieta, mostrando total descontentamento com a situação, até que o motorista, finalmente cansou de brincar e mostrar sua macheza e continuou seu percurso. Depois daquilo eu me dei conta de que ainda existiam mulheres que mereceriam respeito e aquelas que não mereceriam. Para a sociedade, a prostituta, a atriz pornô, a piriguete e qualquer menina de shorts, saia, vestido ou muito gostosa, andando sozinha de noite, não merece respeito. Já a garota casada, com filhos, com roupas apropriadas abaixo do joelho, merece.
No Oriente Médio é comum vermos mulheres de burka. É interessante que mesmo estando vestida até os olhos, quando uma mulher anda desacompanhada de um homem, a violência contra ela é justificada. Uma analista feminista árabe, que infelizmente não me lembro o nome, uma vez, disse em entrevista para a Radio France Internationale (RFI) que a mulher, nestes países, quando não está acompanhada é objeto público. Quando ela anda sozinha, ela demonstra que não é propriedade de nenhum homem e assim, pode ser usurpada e invadida, como uma terra, por qualquer outro que queira a sua posse. Sendo assim, as mulheres desses países, por medo de serem estupradas, quase não saem de casa e parecem ter emprestado suas pernas para os maridos, que só as devolvem, quando lhes convier.

É um mito considerar que o problema é a roupa ou o comportamento. O
problema é simplesmente existir como mulher livre.
Na foto: "Malditos dedos dos pés!"Fonte: Funnyasduck
Este é um controle total do direito de ir e vir da mulher, mas é também a transformação da mulher em objeto, pois, ela só está segura quando foi devidamente “comprada”. No Brasil e Ocidente, apesar de acharmos que aqui somos livres e criticarmos duramente os países muçulmanos, nota-se uma clara similaridade com este tipo de visão. A mulher aqui, não precisa cobrir os olhos e até existem as corajosas que não cobrem quase nada. É permitido que a mulher se vista como quer, mas mais ou menos! Se ela for piriguete, as pessoas acham normal (homens e mulheres) que ela seja abusada na rua. O caso mais recente foi a passada de mão no sexo da periguete Nicole Bahls. Para o homem que fez isso, mas também para o colega que ficou parado e para a multidão, ela merecia. Afinal, não estava vestida apropriadamente. “Ela pediu a passada de mão! Ela gostou, afinal, mulher mais ou menos vestida, quer sexo!” É assim que tod@s pensam.
No caso das prostitutas, vai além, pois se ela vende o sexo, a sociedade acha permitido que ela sofra qualquer violência psicológica ou física. Imagino que todos os dias milhares de prostitutas sejam violentadas física e psicologicamente no Brasil. E elas não denunciam, pois possivelmente a polícia vai até rir de suas caras, quando elas disserem a profissão! “Mas queria o quê?”, eles diriam!

Aqui no Brasil não há burka, mas são diversas as estratégias
encontradas pelas meninas para evitar a violência,
mesmo que seja se fantasiar de menino. Fonte:
Precisodetijesus
Não somos tão diferentes dos países do Oriente Médio! Afinal, a mulher continua tendo que comprar seu respeito pelo casamento. E se não é casamento, pelo menos que tenha um homem do lado para não mexer com ela! Quando era pequena, com apenas onze anos, fui seguida duas vezes por homens de carro, que diziam boas impropriedades. Eu, extremamente metódica, resolvi criar um plano de segurança: quando saia da escola à tarde, colocava um jaquetão e um boné e fingia ser menino. Na minha imaginação infantil, criei até um bigode falso e achei que melhoraria o disfarce! É hilário, mas eu já sentia muito medo e sabia que se fosse menino, ninguém me seguiria ou me xingaria na rua.

É comum achar que reclamar de cantadas é exagero feminino e simples tolice,
como na tirinha abaixo. Fonte: Drang
Todos dizem que mulher gosta de cantada. Eu, nunca gostei! Sair de casa e ouvir musiquinhas de pagode, sertanejo e outros, ouvir xingamentos, sussurros, assobios, buzinas, não é nada agradável! É interessante que as pessoas ficam chocadas quando as mulheres reclamam disso. Elas dizem que eu deveria dar graças a Deus de agradar aos homens nas ruas! Só um homem vivendo um dia na pele de uma mulher para saber como é cansativo e ameaçador ter que mudar de lado na rua para evitar um grupinho de homens; de ter que acelerar o passo, quando um homem chega perto de você e começa a sussurrar; ou de tremer de medo quando um caminhão para no meio da rua e te segue lentamente dizendo obscenidades (já aconteceu comigo). É terrível e vive-se com medo.

O caso de Nicole Bahls deixou claro que a burka invisível realmente existe no Brasil e
que Nicole, esquecendo de vesti-la, mereceu a violência que sofreu,.
Fonte: Yahoo.
Todas as mulheres criam estratégias de fuga. Eu já cheguei a andar com um saca rolhas, como arma! O problema é que existem mulheres em situação de risco! E ninguém parece ligar para elas! As piriguetes, as “mal vestidas” – como dizem por aí – simplesmente resolveram dar a cara a tapa. Em pior situação estão as prostitutas que a maioria concorda ser um lixo na sociedade. Com ela se pode fazer o que quiser. Ela já é considerada uma propriedade de qualquer homem, afinal é só dar um dinheirinho que ela cede!

A agressão psicológica nas ruas é uma maneira de manter a mulher em seu
lugar e legitimar o poder masculino sobre sua vontade. Fonte: Poste de veille
No Canadá, onde a cultura é bem diferente, há cidades em que as mulheres andam sem camiseta no verão. Na Europa, as mulheres fazem topless na praia. Não importa a idade e nem a gostosura! Os homens passam como se nada estivesse acontecendo! Tudo é cultural e a educação faz toda a diferença. Na França o sexo é algo tão natural, para meninas e meninos, que não há porque criar conflitos de poder! É muito raro um homem mexer com você na rua! A não ser que ele seja descendente de muçulmanos, o que reitera ainda mais o papel da educação parental no comportamento dos jovens. Cantadas, pressão psicológica e outros são comportamentos masculinos que visam garantir o seu poder sobre o corpo da mulher. É uma forma de garantir sexo, custe o que custar! E uma pressão psicológica da cultura do medo, que coloca a mulher no lugar dela e o homem na posição de poder. É assim que chegamos a situações extremas de compra de casamentos, compra de crianças, tráfego sexual, circuncisão feminina, burkas e roupas “adequadas”. A ideia dessas estratégias é garantir ao homem uma mulher para fazer sexo. O medo e a opressão são garantias de reprimir a vontade feminina de dizer não!

Algumas mulheres não têm o direito de dizer não. No caso das prostitutas,
até a violência sexual é considerada uma piada. Fonte: AindaMelhor
No Brasil, isto também ocorre! Isto porque, apesar de termos muitas bundas e peitos desfilando nas escolas de samba, a cultura brasileira delimita claramente a mulher que tem valor e aquela que não tem. Existe uma forma de controle sobre o comportamento da mulher. Se ela quiser ter o direito de dizer não, ela deve ser asseada e se vestir como diz a“lei de Deus”, macho por natureza. Caso ela se vista com roupas “inapropriadas” ou apareça em locais e horários não permitidos, mesmo de burka, ela não tem o direito de dizer não! Nicole Bahls não tem o direito de negar fogo, de acordo com nossa sociedade. Segundo a sociedade, ela não se veste e não se porta como uma mulher de “bem” deveria se portar. Em alguns lugares, mesmo com roupas que escondem bunda e peito, mulheres não têm o direito de dizer não! Em um bar de rock n’roll, uma mulher sozinha, não pode apenas querer beber! Ela terá que ouvir as cantadas alheias. Claro que alguém poderia dizer: mas, uma pessoa sozinha em um bar quer o quê? Bem, você quer dizer: uma mulher sozinha! Pois homens sozinhos que querem beber não querem exatamente sexo, não é mesmo?

Eu poderia dar milhares de exemplos! As mulheres leitoras, principalmente, devem ter outros milhares para contar! Ou até estratégias engraçadas para se sentirem mais seguras, como o meu bigode falso! Só não podemos nos esquecer que as prostitutas continuam a sofrer e que as piriguetes, as funkeiras e outras, continuam levando passadas de mão, enquanto os outros se sentem convencidos de que elas pediram por isso!

Usando ou não uma burka, sorrindo ou séria, de noite ou de dia, sempre
haverá algum motivo e argumento para controlar o comportamento da
mulher que assume sua independência e
 agredi-la, quando o controle não funciona devidamente.
 Fonte: StopStreetHarassment
Controlar o comportamento da mulher em uma sociedade demonstra uma extrema desigualdade de gênero, que leva ao cúmulo de falarmos mais sobre o tailleur da presidenta do que sobre seus pensamentos. Demonstra uma sociedade em que os próprios homens não estão sexualmente amadurecidos e que necessitam de formas de coerção para conseguir uma parceira! Mudar isso é uma luta e tanto! E sabemos que esta luta é primordial, pois os países com maior igualdade de gênero são também aqueles com os maiores Índice de desenvolvimento humano (IDH); são os países com menor mortalidade infantil e alguns têm índices baixíssimos de violência (ver Relatório sobre desenvolvimento mundial de 2012 – visão geral, igualdade de gênero e desenvolvimento).

Não é o instinto, mas a cultura que mantém ou não relações de gênero
desiguais. Fonte: Voagoleiro
Homens, vocês também têm responsabilidade de educar seus filhos! As crianças aprendem por exemplos! Enquanto elas verem seus pais tratando algumas mulheres como dignas de direito (suas mães) e outras como objetos (simples comentários ao ver uma panicat, por exemplo), o  mundo não vai mudar e continuaremos a ver prostitutas destratadas nas ruas, passadas de mão em piriguetes e meninas que se julgam melhores que as outras por usarem calça jeans e não uma saia curta.

Às vezes é difícil entender como uma mulher pode não gostar de cantadas na rua, afinal isso faz parte de nossa cultura. Por isso, deixo abaixo uma reportagem francesa sobre o documentário "Femmes de la rue" (Mulheres das ruas), mostrando o dia a dia de uma moça que decide caminhar sozinha pelas calçadas de Bruxelas. Uma câmera escondida mostra bem o cotidiano da maioria das mulheres do mundo, mesmo em um país desenvolvido. 


Legendas
NARRADOR: Ameaçada, insultada! É o que mostra um filme dirigido por uma jovem mulher que passeou por certos bairros de Bruxelas. Podemos falar de pesadelo, tamanha a agressividade das interpelações. Chocante, e isto acontece na capital da Europa. Reportagem de Dominique Dussein e Aurélie Didier. 
Sofie Peeters ainda está surpresa pela experiência que passou. Ela mora há dois anos em Bruxelas, no bairro de Aneeseens, um local desfavorecido. E o que ela descobre lhe surpreende. Cinco a dez vezes por dia ela é insultada ou ameaçada verbalmente por homens. No começo ela perguntou se era ela que estava provocante. 
SOFIE: Eu acho que é a primeira pergunta que a garota se faz. "Sou eu? É alguma coisa que eu fiz? É minha roupa? Alguma coisa que eu fiz?" Não sei! Mas, quando eu fiz meu filme de conclusão de curso, eu vi que não é só comigo. São muitas mulheres que têm este problema.
NARRADOR: Sofie se formou como cineasta. Ela decide se voltar então para este fenômeno. Ela equipa-se de uma câmera escondida e é então que descobrimos o que centenas de mulheres sofrem todos os dias em Bruxelas. 
HOMENS: "Você é bonita, senhorita!" / "Posso te oferecer uma bebida?; Não obrigada." / Uma bebida juntos ou algo parecido?; Não obrigada!; Na minha casa, claro, não em um café! No hotel, na cama, você conhece! Direto!; Você não entendeu? Eu não quero! / Se você me excita, é normal, não?! / Oi bundinha! / Cachorra / Vadia!
NARRADOR: Este filme mostra o machismo no dia a dia e uma terrível diminuição da liberdade da mulher. 
Eu me dizia: "venha aqui com um homem ou seu namorado e pronto: eles te deixam em paz!" Mas isto é idiota! A mulher tem direito de andar onde quiser!
No quadro do convidado do jornal das 13h estava Chévain Sansdinier(?).
SANSDINIER: Primeiramente, é totalmente escandaloso o que vive esta mulher. Eu moro neste bairro há 10 anos e ... / Não é somente esta mulher! / Sim, não é somente esta mulher e ela tem razão! 
NARRADOR: grande novidade: a cidade de Bruxelas poderá punir insultos a partir de setembro. 
SANSDINIER: "O que eles não querem entender, eles aprenderão sendo acusados. Não puniremos todos os insultos, mas se você agir, você pode ser multado e você deverá pagar e não irá para segunda instância."
ÂNCORA: E como é flagrante que deve ser relatado, será muito difícil pôr em prática e regulamentar a situação.
SANSDINIER: Eu acho, com minha formação de jurista, que serve como uma lembrança da lei e das normas de viver bem em sociedade, isto é importante.
NARRADOR: A cineasta decidiu deixar a capital. Seu filme entra em cartaz hoje à noite no "Cinema de Galérie" e rodará pelos festivais. 


Paz!

Referências
Banco Mundial, Relatório sobre desenvolvimento mundial de 2012 – visão geral, igualdade de gênero e desenvolvimento.


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